SUZI, “CARLÃO” E “PARAZINHO”

“Atire a primeira pedra, ai, ai, ai
Aquele que não sofreu por amor…”
(“Atire a Primeira Pedra”, Ataulfo Alves e Mário Lago, 1943).

A única vez em que entrei em um presídio foi em 1999. Lá se vão 21 anos. Foi em um presídio do Complexo de Bangu. Na ocasião, eu era vice-presidente do Olaria Atlético Clube e a Secretaria de Justiça havia feito uma programação para levar times de futebol profissional aos presídios do Rio para disputar jogos amistosos contra o time da penitenciária. O Secretário de Justiça à época era Sérgio Zveiter e ele esteve presente em nossa visita em que o time profissional do Olaria (aliás, um ótimo time à época) foi jogar contra a seleção do presídio de Bangu. Também esteve no presídio a reportagem da CNN, que registrou o evento e a matéria foi ao ar na madrugada seguinte. Lembro do meu primo ter falado que me viu na TV. Lembro que o Olaria ganhou o jogo, mas não recordo o placar. Porém, nunca esqueci de dois detentos que conheci pessoalmente naquele dia: “Carlão” e “Parazinho”.

Lembrei desse episódio em razão do rumor exponencial que tomou a entrevista do médico Drauzio Varella com a transexual Suzi Oliveira e que foi ao ar no programa Fantástico. O abraço dado em Suzi e a manifestação de carinho demonstrados por Drauzio Varella acabaram sendo a senha para um dos maiores linchamentos virtuais (e reais) já sofrido por alguém nos últimos tempos. Especialmente por uma pessoa que prega a paz, ensina ciência de forma popular e possui uma reputação ilibada. O problema é que Suzi estuprou e matou uma criança. O crime mais hediondo que alguém poderia cometer. Quando tudo veio à tona, inclusive a ficha criminal de Suzi Oliveira, então “o tempo fechou”. Uma carreira construída há anos, em que medicina e jornalismo caminham juntos, parece ter sofrido um golpe irreversível. Incicatrizável. Permanente. Claro, estou falando daqueles que não o perdoam, embora ele próprio, em uma atitude magnânima, já tenha pedido todas às desculpas à família da criança que foi vítima do bárbaro crime. Drauzio Varella, quem diria, foi parar até em programa de fofoca de famosos da Rede TV!

Lembrei muito de minha visita ao presídio em 1999. “Carlão” era o organizador dos campeonatos internos do presídio e lá funcionava até uma federação. Os times tinham os nomes dos clubes do Rio de Janeiro e a organização da federação do presídio era impressionante. Alguns diziam que era mais organizada do que a própria Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, a FERJ. “Carlão” era muito simpático e, pelo trânsito que tinha, parecia ser premiado por bom comportamento. Ele destacou-se como nosso cicerone.

“Parazinho” era mais calado, mas até hoje não esqueço do que me falou: “Pôxa, foi ótimo vocês terem vindo aqui hoje senão não teríamos nada para fazer. Esse jogo salvou o nosso dia.” Ao final da visita, abracei “Carlão” e “Parazinho” e fiquei satisfeito por ter, ainda que timidamente, cumprido a missão que nos foi delegada, naquele momento, como dirigente de um clube de futebol. Pouco tempo depois soube mais a respeito de “Carlão” e “Parazinho”, especialmente que eles ainda teriam muitos e muitos anos a cumprir na penitenciária.

Ora, isso acontece sempre. Médicos, pastores, padres, assistentes sociais, deputados, juízes, defensores públicos, jornalistas, professores, vez por outra estão nos presídios para cumprir alguma missão. Posso até entender quem ficou indignado. Mas não entenderei se, mesmo depois das desculpas públicas de Drauzio Varella, esses continuarem carregando o rancor.

Porém, penso que grande parte de tudo isso não pode ser dissociada dos tempos em que vivemos. Parece que, de uns tempos para cá, nada consegue mitigar o ódio. Mais estarrecedor são os apedrejamentos vindos daqueles que se dizem “cristãos” da turma do “Deus acima de todos”.

Quero finalizar, 21 anos depois, pedindo minhas sinceras desculpas a todos os parentes das vítimas que sofreram as consequências terríveis dos crimes cometidos por “Carlão” e “Parazinho”. Nem sei se eles ainda estão vivos. Mas, se tivesse que voltar lá tendo que exercer o mesmo papel, faria exatamente tudo o que fiz em 1999. Que comece o apedrejamento. E, aquele que nunca pecou, que atire a primeira pedra.

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