CENSURA E A CABELEIRA DO ZEZÉ

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Será que ele é bossa nova
Será que ele é Maomé
Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é…” (Trecho da marcha carnavalesca “Cabeleira do Zezé”, de João Roberto Kelly).

A censura, lamentavelmente, voltou ao Brasil. E sem eufemismos. Em várias instâncias (federal, municipal). Por vários poderes (Executivo, Judiciário). O desembargador  Benedicto Abicair acaba de ordenar que o especial do grupo Porta dos Fundos “A Primeira Tentação de Cristo” seja retirado do ar pela Netflix. A decisão do desembargador atendeu a uma petição da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. Pior do que a censura imposta pelo desembargador Benedicto Abicair foi a sua justificativa, na qual a emenda saiu pior do que o soneto: o desembargador alegou que, tirando o especial do ar, a medida “acalmaria os ânimos”. Se o clímax da exaltação dos ânimos foi o ataque a bomba sofrido pela produtora, então os terroristas venceram. Ou seja, na lógica do magistrado, se os ânimos estiverem exaltados, então que censure-se uma obra. Calado! Com isso, o desembargador está admitindo que o ato de violência cometido contra o Porta dos Fundos surtiu o efeito esperado para os fascistas fundamentalistas.

É lamentável e deplorável o ponto a que nosso país já chegou. Recentemente, Jair Bolsonaro, sem meias palavras, censurou a Ancine. A EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), agora nas mãos de militares, também já havia censurado uma reportagem do programa “Fique Ligado”, que falava sobre o antigo jornal “Pasquim”, um dos expoentes da imprensa alternativa e que foi um dos focos da resistência à ditadura militar, especialmente com as denúncias que fazia. O programa censurado pelo governo Bolsonaro falava da perseguição que o jornal sofria. Recentemente o prefeito fundamentalista do Rio, o pastor Crivella, mandou que fosse recolhido um livro da Bienal. Outro exemplo foi a censura imposta, pelo Itamaraty, agora comandado pelo visionário, olavista e fundamentalista Ernesto Araújo, a um show do Chico Buarque.

Mas o desembargador Benedicto Abicair, o censor de plantão, é daquele que usa dois pesos e duas medidas. Foi ele que, em 2017, absolveu Jair Bolsonaro depois que o atual Presidente da República fez declarações claramente homofóbicas e racistas. Disse o desembargador na ocasião:

“Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja.”

Agora, ao impor a censura ao Porta dos Fundos, o mesmo desembargador afirmou:

“O direito à liberdade de expressão, imprensa e artística não é absoluto.”

Ou seja, para livrar Bolsonaro, o peso do desembargador era um. Para censurar o Porta dos Fundos, o peso já foi outro. E o desembargador recuou de sua pretérita defesa da liberdade de expressão, para “acalmar os ânimos” e fazer o grupo fascista que atacou a produtora ficar rindo de todos nós.

Claro que a decisão absurda do desembargador que admitiu o racismo e a homofobia de Bolsonaro e coibiu o especial do Porta dos Fundos foi criticada no próprio Judiciário e também entre constitucionalistas. O ministro do STF  Marco Aurélio Mello considerou a decisão do desembargador uma “barbaridade”. E até o João Amoedo, o dono do Partido Novo, um partido de direita, criticou a censura imposta pelo desembargador.

Evidentemente, em um Estado laico, repetindo, Estado laico, do ponto de vista constitucional não se pode falar em ofensa pelo fato de um direito ser exercido, como o da liberdade de expressão. Se alguma religião, grupo religioso ou fiel de qualquer credo sentir-se ofendido, que se busque a devida reparação na Justiça. Mas, pelo artigo 5º de nossa Lei Magna, que lamentavelmente não foi observado pelo desembargador, não existe a censura.

Fico imaginando se algum muçulmano ou alguma organização islâmica entrasse na Justiça para proibir a execução da conhecida marcha carnavalesca “Cabeleira do Zezé”, de João Roberto Kelly, sucesso do carnaval de 1964. Em um trecho a letra diz que um cabeludo (no caso o Zezé) pode ser um “transviado” ou “Maomé”. Já imaginaram como os adeptos do Islã poderiam ficar ofendidos com o profeta sendo confundido com um “transviado”? E se caso um processo desse parasse nas mãos do desembargador Benedicto Abicair? Ele também proibiria a marcha só para “acalmar os ânimos” dos muçulmanos? E olha que o carnaval já está chegando…

PS: Certa vez João Roberto Kelly contou a história da famosa marchinha de sua autoria e disse que o tal “Zezé” era um garçom cabeludo que fazia muito sucesso entre as mulheres. Pode ser até que os muçulmanos curtam a marcha. Mas, e se uma determinada parcela deles sentir-se ofendida? Talvez a suposta ofensa fosse até maior, porque “transviado” significa “aquele que se afastou dos padrões vigentes, que se perdeu.” Já pensou alguém insinuar isso sobre o profeta, ainda que em uma marcha carnavalesca? E olha que muitos cristãos cantam a marchinha no carnaval…  

 

 

 

 

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