QUARENTINHA E A CONDECORAÇÃO DO SNIPER

quarentinha editado

“Era pago para isso e não estava fazendo nada além de meu trabalho e minha obrigação.” (Waldir Cardoso Lebrego, o “Quarentinha”, craque e ídolo do Botafogo nas décadas de 1950 e 1960, quando perguntavam a ele porque não sorria e não festejava quando fazia gols).

Mais uma vez invoco o ensinamento de Waldir Cardoso Lebrego, o “Quarentinha”, craque e ídolo do Botafogo que, atuando nas décadas de 1950 e 1960, marcou mais de 300 gols. Quarentinha ficou conhecido como “o artilheiro que não sorria” porque, quando marcava gols, não gostava de festejar e nem de ser festejado, dizendo que não estava fazendo mais do que a obrigação para a qual era pago como profissional. “Não sou pago para comemorar”, dizia o ídolo botafoguense.

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, por iniciativa de deputados do PSL, decidiu conceder a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria da Casa, ao atirador de elite que alvejou mortalmente o sequestrador que mantinha 39 reféns em um ônibus na ponte Rio-Niterói no último mês de agosto. O sniper, cujo nome, por razões evidentes, será mantido em sigilo, foi considerado pelos proponentes da láurea como um “herói” e, para protegê-lo, foi informado que a medalha será entregue ao seu comandante. O referido sniper passa assim, oficialmente, a ser considerado um herói, apesar de anônimo. A concessão da homenagem, como era esperado, dividiu os deputados. Não é nosso objetivo, por ora, entrar nesse mérito. Queremos, isso sim, lembrar do saudoso artilheiro Quarentinha quando marcava seus gols. Mas suponhamos, a título de raciocínio, que o sniper tenha cumprido de maneira perfeita a sua missão ao matar o sequestrador e, até usando a lógica utilitarista, sua ação tenha se justificado pelo fato de que, naquele momento extremo, seria necessário ceifar uma vida para que outras 39 fossem salvas. Então o sniper, usando toda a sua perícia, preparo técnico e treinamento, cumpriu de forma perfeita e briosa a sua missão. Ora, ele é pago para isso e não fez nada além de sua obrigação. Na condição de servidor do Estado do Rio de Janeiro, o sniper, como diria Quarentinha, não fez nada além de seu trabalho.

Só para ficarmos no Estado do Rio de Janeiro: nesse exato momento, e todos os dias, médicos, especialmente cirurgiões, estão salvando vidas de pessoas nos hospitais estaduais, apesar das péssimas condições de trabalho, salário e descaso das autoridades. Não seriam eles, também, heróis? E se contabilizássemos as vidas que já foram salvas pelos profissionais de saúde nos hospitais estaduais? Acho que faltariam medalhas na ALERJ. Mas, tal como nos ensinou Quarentinha, os médicos e outros profissionais de saúde não fazem nada além de suas obrigações.

O mesmo exemplo estende-se aos profissionais de educação. Com suas atuações, muitas vezes professores, orientadores educacionais, supervisores e diretores de escolas, salvam vidas com uma educação inclusiva e que, trazendo jovens e até adultos para as escolas, ensinam, aconselham, orientam e, literalmente, também salvam vidas. Não seriam esses profissionais, também, heróis? E se contabilizássemos quantas vidas já foram salvas por esses profissionais? Nesse exato momento, em várias escolas, muitos profissionais de educação em suas escolas estão empenhados na campanha “Setembro Amarelo”, onde dialogam com os alunos a prevenção do suicídio. Não sabemos contabilizar, mas temos a certeza de que vidas são salvas com esse trabalho, ainda que não seja necessário dar um tiro. Acho que também faltariam medalhas na ALERJ se esses “heróis” das escolas também fossem condecorados. Mas, tal como nos ensinou o craque Quarentinha, os profissionais de educação não fazem nada além das obrigações para as quais são pagos.

Poderíamos estender a gama de profissionais do Estado que salvam vidas, como os bombeiros, que também arriscam suas vidas para salvar outras. E os “salva-vidas” das praias? E poderíamos seguir em frente com essa lista. Suponhamos, então, que todos sejam “heróis”, já que todos salvam vidas.

A morte do sequestrador Willian Augusto da Silva, aos 20 anos de idade, ao contrário de Quarentinha foi comemorada como se fosse um gol pelo governador Wilson Witzel que, antecipando-se à ALERJ, prometeu uma homenagem ao atirador. O governador Witzel ainda tem mais de três anos de mandato pela frente e, ao que parece, já lançou-se candidato a Presidente da República. Que tal o governador, junto com os deputados do PSL que o apoiam, darem mais atenção, dignidade e valorização a tantos outros profissionais aqui citados, que diariamente estão salvando vidas em nosso Estado, nas mais diferentes funções? Porque, se isso realmente acontecesse, o craque Quarentinha nos diria que o governador também não estaria fazendo nada além da obrigação para a qual foi eleito e é pago pelo povo do Estado.

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