“Nenhum homem livre será capturado ou aprisionado, ou desapropriado dos seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou de algum modo lesado, nem nós iremos contra ele, nem enviaremos ninguém contra ele, exceto pelo julgamento legítimo dos seus pares ou pela lei do país.” (Trecho da Magna Carta de 1215, que o rei João Sem Terra, da Inglaterra, foi obrigado a assinar, limitando seus próprios poderes).
A origem do constitucionalismo e do combate ao abuso de autoridade pode ser considerada a famosa Magna Carta, de 1215, que visava coibir o abuso do então rei da Inglaterra João Sem Terra, que tomava várias medidas arbitrárias, dentre elas as prisões sem qualquer prova ou fundamento. Os então barões ingleses obrigaram o rei a assinar a lei que limitava seus próprios poderes. A famosa Magna Carta também pode, assim, ser considerada a raiz do habeas corpus, o instituto que protegeria os cidadãos de prisões arbitrárias e sem amparo legal, embora o documento não mencione explicitamente esse direito. Praticamente tudo o que veio depois, na própria Inglaterra, na França, na Constituição norte-americana e também nos códigos e Constituições brasileiras, têm sua origem na Magna Carta de 1215, não obstante ainda existirem diversos candidatos a “Joões Sem Terra” pelo mundo afora, inclusive no Brasil.
Uma das maiores injustiças que qualquer cidadão pode sofrer é a prisão sem provas. Não estamos falando da prisão do Lula. Uma das maiores injustiças que qualquer cidadão pode sofrer é ter sua prisão decretada sem amparo legal. Continuo dizendo que não estamos falando da prisão do Lula. E entendemos que qualquer juiz, sabedor da inexistência de amparo legal para efetuar uma prisão, ainda assim a decrete, então esse magistrado deveria sofrer alguma sanção. Aliás, isso é gravíssimo. E não estamos falando (ainda) do ex-juiz e atual ministro bolsonarista Sérgio Moro.
O projeto de abuso de autoridade aprovado na Câmara dos Deputados deverá sofrer vetos por parte do governo Bolsonaro. E hoje está sendo noticiado que o ministro Sérgio Moro defende o veto de oito artigos contidos no projeto aprovado na Câmara. Dentre os vetos pretendidos por Moro, há um que chama nossa atenção: trata-se do veto ao artigo 9, que prevê a detenção de um a quatro anos para o magistrado que decretar prisão sem amparo legal. Ou seja, Moro entende que um magistrado pode decretar a prisão sem amparo legal e não sofrer qualquer sanção. Sua alegação é a de que esse trecho do projeto “limitaria a liberdade do juiz de decidir.” Seria de bom alvitre lembrar a Sérgio Moro que o juiz não tem qualquer liberdade para decidir absolutamente nada. Simplesmente porque o juiz deve estar preso às determinações da lei. O que deve ser garantida ao juiz é a independência do poder do qual é investido para aplicar a lei. O que Moro quer dizer com “liberdade do juiz de decidir”? Seriam meras conjecturas, desconfianças, pessoalidade, parcialidade, antipatia ou ativismo político? Ou será que Moro pode estar referindo-se à fórmula da prisão por “convicção sem provas” criada por seu subordinado Dallagnol?
Depois de todo lamaçal da Lava Jato que veio e ainda continua vindo à tona, mostrando os abusos, ilegalidades, crimes processuais e parcialidade cometidos por Moro e procuradores, a tentativa de veto a esse item do projeto soa como uma confissão. E nem falo do ex-juiz Moro. Falo dele como ministro bolsonarista, que abraçou politicamente as bandeiras mais retrógradas da história desse país. Dar liberdade a um juiz para prender sem conformidade com as hipóteses previstas em lei tem um nome: é fascismo, sem qualquer eufemismo. Querer permitir que um juiz tenha “liberdade para prender”, mesmo sem amparo legal, é a legalização do Estado de exceção. Resta saber qual será a reação dos “barões da Câmara”. Apesar de o próprio Bolsonaro já ter admoestado o seu ministro da Justiça, ao lembrar-lhe que “ele não é mais juiz e não tem mais a caneta”, será que Sérgio Moro, em seus delírios, ainda pensa que é o “rei João Sem Terra da República de Curitiba”?